A Folha de São Paulo de ontem trouxe um artigo do poeta Ferreira Gullar intitulado “Quem mantém o tráfico é o usuário” (ver no Cella), em que ele opina favoravelmente ao argumento, muito em voga, de que o usuário de algum produto ou serviço criminalizado pelo Estado é também partícipe e responsável pelos males advindos da atividade criminosa.
Considero esse argumento falacioso e equivocado no que se refere ao tráfico de drogas e, também, no que se refere às práticas de compartilhamento de bens culturais na internet.
Vamos ao texto de Ferreira Gullar.
Num primeiro momento, ele distingue os dependentes das drogas daqueles que a utilizam de forma eventual e recreativa, sustentando que o número destes últimos deve ser reduzido, pois eles é que sustentam o tráfico e, em decorrência, os malefícios por ele causados, em especial a violência que ceifa sobretudo as vidas de jovens das periferias do País.
Diz Ferreira Gullar: “assim como a maioria dos consumidores de bebidas alcoólicas não é constituída de alcoólatras, também a maioria dos consumidores de drogas as consome socialmente”.
Então o problema não está no consumo, mas na criminalização.
Beber, ou tomar drogas, é uma decisão individual e quem procura por esses produtos os obterá de alguém.
Digo aqui: se algum dia for aprovada uma lei seca no Brasil a ponto de se tornar crime o comércio de bebidas alcóolicas, em vez de comprar o produto no supermercado, ou consumi-lo em bares, como de costume, de alguma maneira, quando sentir vontade, encontrarei a bebida para comprar, e provavelmente quem me venderá será um traficante, que colocará o produto à minha dsposição a um custo elevado e sem que se garanta a autenticidade da bebida, que estará passível de sofrer toda a sorte de falsificações e adulterações, em prejuízo à minha saúde.
Ademais disso, esse traficante estará envolvido em uma rede ilícita que certamente terá sua face de violência.
Só não me venham dizer que eu, como consumidor de bebida, sou responsável por essas mazelas porque sustento o tráfico.
O tráfico é inventado pelo Estado no exato momento em que criminaliza uma atividade para a qual existe demanda. E se o Estado decidiu assim, cabe a ele fazer valer sua proibição. Não venham responsabilizar os indivíduos que não exercem a atividade criminosa.
O ponto é saber se a criminalização é o caminho. Assim como no caso das bebidas, há demanda pelas drogas. Nesse ponto acerta Ferreira Gullar, pois enquanto houver demanda, haverá disponibilidade do produto.
O que se tem notado - e isso tem sido defendido, por exemplo, por Fernando Henrique Cardoso - é que a via da criminalização é uma política que se revelou desastrosa no caso das drogas.
Aproveito para criticar também aqueles - sobretudo a indústria fonográfica e editorial - que querem fazer de todos nós, que baixamos arquivos em redes de compartilhamento, criminosos.
Primeiro, não distinguem os que compartilham arquivos para uso próprio daqueles que o fazem em quantidades industriais para futura comercialização. Quanto a estes as empresas deviam se insurgir, mas com seus próprios recursos, não atribuindo a responsabilidade ao Estado por meio de criminalização da atividade e, pior, com ofensas, por exemplo, aos nossos adolescentes, que no discurso da indústria são tidos como criminosos.
Ao diabo a indústria com um discurso deturpado desses.
Aliás, é sempre bom lembrar que, nos Estados Unidos, o combate à pirataria é problema da indústria e ela é que despende seus recursos para impedir a comercialização dos bens protegidos, pois se trata de um problema de natureza civil, não criminal.
Aqui no Brasil, ao manter esse tipo de ilicitude na esfera criminal, a indústria transfere ao Estado uma responsabilidade que devia ser dela.
Tristes trópicos!
José Renato Gaziero Cella